Chegou criancinha com a família judia procedente da Ucrânia. Naturalizou-se brasileira. Fixou-se em Pernambuco. Passou a infância e a adolescência em Recife. Morou na Boa Vista. Na Praça Maciel Pinheiro. Estudou no Colégio Hebreu Iídiche Brasileiro na Imperatriz, no Grupo João Barbalho e no Ginásio Pernambucano. A presença local de tão forte fez Clarice nunca negar suas origens pernambucanas. Jamais se revelava ucraniana. Ficou órfã muito cedo aos oito anos. Sua mãe foi enterrada no Cemitério Israelita do Barro. Dona Mânia era uma pessoa muito doente. Aqui, um parêntese quanto à versão de alguns biógrafos de Clarice que afirmam que sua mãe fora violentada por um soldado russo. Tenho depoimento de um parente próximo. Uma prima viva que discorda desta versão. Fato é que Clarice e a família, pai e irmãs, tiveram de se mudar para o Rio de Janeiro. Clarice deveria ter 14 anos. Lá completou os seus estudos e formou-se em Direito na, então, Universidade do Brasil.
Passada em concurso do Ministério do Trabalho teve um decisivo apoio do pernambucano Agamenon Magalhães, para ingressar naquele órgão. Morou em vários bairros cariocas. Fomos seus vizinhos no Leme. Na Rua Gustavo Sampaio, 88. Local aprazível. Praia. Equivalente a Rua dos Navegantes. Ao fundo, um morro com mata verdejante.
Lispector não se distinguia pela simpatia. Mas, ela quando chegava se impunha. Sem traços de soberba ou antipatia. Enigmática, quem sabe. Declarava-se tímida e ousada. Talvez, até porque sua vida sempre foi muito atribulada. Casou com um diplomata, Maury Gurgel. Teve dois filhos, Pedro e Paulo. Por consequência da profissão do marido, viveu em diversos países. Mas, em todos os lugares manteve plena sua vida literária. Separou-se do marido. Provavelmente, a doença emocional do seu primeiro filho atrapalhou a sua vida conjugal. Clarice não tinha uma vida sossegada.
Como vizinho, vou citar apenas um fato: um incêndio em seu apartamento. Não recordo bem a data. Sei que foi em meados da década de 60. Eu estudava Direito, em Recife. Traída pela ponta de um cigarro Clarice Lispector quase morreu em seu próprio apartamento da Gustavo Sampaio. Para sua salvação contou com o decisivo apoio de um casal muito amigo, Heloísa e Saul Azevedo. Muito conhecido da sociedade pernambucana. Ele fora gerente por muitos anos da Agencia Recife-Centro do Banco do Brasil. Foi de uma dedicação impar. Clarice sofreu muito.
Mas falar em Clarice Lispector é captar sua obra. Como judia só é comparável ao Franz Kafka considerado o maior escritor judeu do mundo de todas as épocas. Lispector foi escritora, jornalista, romancista, ensaísta, cronista, novelista, contista, poeta e por isso, uma das maiores escritoras do século passado. A obra de Clarice é de um valor inestimável. Cito alguns tesouros como: “Perto do Coração Selvagem”, “Laços de Família”; “Um sopro de Vida”; “A Paixão Segundo GH” e a “Felicidade Clandestina”.
Prefiro destacar as frases de Clarice. Imagine: “Bem sei que é assustador sair de si mesmo, mas tudo que é novo assusta”; Reflita: “A loucura é vizinha da mais cruel sensatez”; Projete: “Civilizar minha vida é expulsar-me de mim”; Aceite: “Gostar de estar vivo, dói”. Aspire: “Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome”. Aconselhe-se: “Minhas desiquilibradas palavras são o luxo do meu silêncio”; Conforte-se: “Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite”. Comemore: “Renda-se como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento”. Previna-se: “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício interior”. Aprenda: “Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta, continuarei a escrever”; e ensine: “E o que ser humano mais aspira é tornar-se ser humano”.
“Não escrevo para agradar ninguém” sentenciou quando se queixavam de não entende-la. Querem mais? Gênio é assim, respondo eu.
Clarice morreu de câncer com apenas 57 anos. Lispector não é imortal, com o maior respeito a todos os imortais da ABL. Clarice flutua imbatível. Ela pertence ao mesmo grupo do grandioso Carlos Drummond de Andrade e do nosso incomparável e singular Gilberto Freyre.
Clarice completaria 100 anos no próximo dezembro. A pandemia serve de pretexto para que nada tenha sido feito pelo Poder público e a iniciativa privada para as devidas comemorações e homenagens a Clarice Lispector. A começar pela recuperação do prédio onde ela morou na Maciel Pinheiro, quase em ruínas. Na Praça, existe um monumento que faz parte do Circuito da Poesia de Recife. Que se incorporem o Governo Federal (FUNDAJ); Secult; Fundarpe; Prefeitura; IAHGP; APL; da ALEPE, soube que há uma proposta para que Clarice seja declarada Patrona da Literatura Pernambucana. Além da Federação e Centro Israelita, Arquivo Judaico, Colégio Israelita, junto com os familiares de Lispector. Usando a força dos nossos pulmões, brademos: “Viva Clarice!” Enquanto baixinho, só para ela, sussurramos: “Adonai, Shalom”, Clarice.
Texto: Ricardo Guerra
Empresário e jornalista
frupel@uol.com.br