Bom Dia SC – Primeiramente, a fotografia, desde sua invenção no século XIX, ocupa um lugar singular na interseção entre a técnica e a arte. Originada de uma série de avanços científicos e tecnológicos que envolvem óptica, química e física, ela surgiu como um dispositivo para registrar a realidade com precisão. Contudo, ao longo do tempo, a fotografia ultrapassou o domínio da pura reprodução técnica para tornar-se uma das mais expressivas linguagens visuais da contemporaneidade. Essa trajetória reflete uma transformação profunda, na qual a câmera não é apenas uma máquina, mas também um instrumento criativo que media o olhar humano sobre o mundo.
O surgimento da fotografia pode ser compreendido como uma resposta ao desejo moderno de capturar o real. A partir de experimentos com a câmara escura e substâncias fotossensíveis, inventores e cientistas buscavam fixar a imagem projetada pela luz em uma superfície permanente. Em 1839, esse desejo se concretizou com a invenção do daguerreótipo por Louis Daguerre, na França. O daguerreótipo utilizava uma chapa de cobre prateada, sensibilizada com vapor de iodo e revelada com vapor de mercúrio. O resultado era uma imagem única, de altíssima definição, mas sem possibilidade de cópias.
Destarte, em poucos anos, novos processos como o calótipo, o colódio úmido e, mais adiante, o filme fotográfico em rolo desenvolvido por George Eastman revolucionariam o acesso à fotografia, tornando-a portátil, reprodutível e acessível a um número crescente de pessoas. Assim, a fotografia nasce profundamente entrelaçada à tecnologia, dependente do desenvolvimento de lentes, emulsões, câmeras e, mais tarde, sensores digitais. No entanto, essa dependência técnica nunca a impediu de ser também uma forma de expressão estética e poética.
Outrossim, desde seus primeiros anos, a fotografia passou a ocupar múltiplos espaços da vida social e cultural. Rapidamente, ela substituiu a pintura como forma privilegiada de retratar indivíduos e famílias, registrando com fidelidade não apenas os traços físicos, mas também as roupas, os móveis, os objetos e os modos de vida. Sua utilização se expandiu para campos como a ciência, a medicina, a antropologia, a criminalística e, com grande impacto, o jornalismo. A fotografia tornou-se uma ferramenta de documentação, de prova e de memória. Com sua aparência de imparcialidade, a imagem fotográfica foi, por muito tempo, associada à verdade, sendo tomada como evidência objetiva da realidade.
Todavia, a suposta objetividade sempre esteve mediada por escolhas subjetivas: o que fotografar, de que ângulo, em que momento, com que luz, com que enquadramento. A fotografia é, portanto, uma linguagem, com gramática própria, capaz de construir sentidos e narrativas.
A fotografia e sua aceitação como arte

Destarte, o aspecto narrativo e expressivo da fotografia tornou-se mais evidente com sua progressiva aceitação como arte. No final do século XIX, movimentos como o pictorialíssimo buscaram legitimar a fotografia no campo das belas-artes, imitando estilos pictóricos, manipulando negativos, suavizando contornos e exaltando temas clássicos. Essa tentativa de conferir “nobreza” à imagem fotográfica refletia uma necessidade de aproximação com a pintura, que, por séculos, fora o paradigma da representação visual.
No entanto, ao longo do século XX, a fotografia ganhou força ao afirmar suas próprias especificidades. Movimentos de vanguarda como o dadaísmo, o surrealismo e o construtivismo russo exploraram o potencial disruptivo da imagem fotográfica. Técnicas como fotomontagens, solarizações, exposições múltiplas e fotogramas mostraram que a fotografia podia ir além do realismo, adentrando territórios imaginários e conceituais. Artistas como Man Ray, László Moholy-Nagy, Alexander Rodchenko e muitos outros reinventaram a fotografia como um campo de experimentação formal e política.
Paralelamente a essas experiências artísticas, a fotografia documental também se consolidava como forma de intervenção social. Projetos fotográficos voltados para questões urbanas, condições de trabalho, desigualdade e conflitos armados tornaram-se fundamentais para a denúncia e a mobilização pública. Fotógrafos como Dorothea Lange, Sebastião Salgado, Gordon Parks e Henri Cartier-Bresson mostraram que a fotografia podia ser, ao mesmo tempo, uma arte e um testemunho.
Esse duplo caráter — artístico e documental — acompanha a fotografia até hoje, sendo parte de sua riqueza e complexidade.
Com a chegada do digital, a fotografia passou por uma transformação radical. A substituição do filme pelo sensor eletrônico e dos laboratórios químicos pelos programas de edição alterou profundamente o processo fotográfico. A imagem, agora composta por pixels e armazenada em arquivos digitais, tornou-se instantaneamente acessível, copiável e manipulável.
Técnicas como o Photoshop, os filtros automáticos e os algoritmos de inteligência artificial ampliaram as possibilidades criativas, mas também levantaram questões éticas sobre a autenticidade, a manipulação e a veracidade. Se antes o desafio era capturar o real com fidelidade, hoje a fotografia convive com imagens que não necessariamente têm qualquer referência direta com o mundo visível. A fronteira entre fotografia e ilustração digital tornou-se difusa, e o conceito mesmo de “fotografia” passou a englobar uma diversidade de práticas visuais.
Entrementes, o advento dos smartphones tornou a fotografia uma linguagem cotidiana. Bilhões de imagens são feitas, editadas e compartilhadas todos os dias. Fotografar tornou-se uma extensão da experiência, um modo de marcar presença, de comunicar sentimentos, de construir uma identidade pública. Redes sociais como Instagram, TikTok e Facebook transformaram a imagem fotográfica em moeda de troca simbólica e afetiva.
Nesse contexto, surgem novos hábitos, como a curadoria da própria vida, o uso intensivo de filtros de beleza, a busca por likes e validação social. A fotografia, outrora reservada a ocasiões especiais, tornou-se onipresente, muitas vezes banalizada, mas ainda central na maneira como nos relacionamos com o mundo e conosco mesmos.
Conquanto a popularização massiva, ou talvez por causa dela, a fotografia contemporânea continua a ser um espaço de produção crítica e artística. Muitos fotógrafos utilizam a imagem como ferramenta para questionar a sociedade, o consumo, a política e as representações de gênero, raça e classe. Projetos autorais propõem novas formas de olhar para o cotidiano, resgatam memórias coletivas, desconstroem estereótipos e promovem diálogos interculturais. A fotografia é usada em instalações, performances, exposições imersivas, livros de artista e plataformas digitais, mostrando sua versatilidade e adaptabilidade.
Ela dialoga com outras linguagens, como o vídeo, a pintura, o design e, mais recentemente, a inteligência artificial. Com isso, sua identidade torna-se ainda mais fluida e expansiva.
Entretanto, faz-se mister lembrar de que a fotografia não é neutra. Toda imagem é resultado de uma escolha: o que se mostra e o que se oculta, quem fotografa e quem é fotografado, com qual intenção, em que contexto. A fotografia é uma construção, um ponto de vista, uma leitura do mundo. Como nos lembra Susan Sontag, ao fotografar, o sujeito exerce um poder sobre o objeto retratado, congelando-o em uma representação que será vista, julgada, compartilhada e, eventualmente, arquivada.
Por conseguinte, refletir criticamente sobre a fotografia é fundamental, especialmente em uma época marcada pela superabundância de imagens e pela aceleração da comunicação visual.
Neste cenário, pensar a fotografia como arte visual e dispositivo tecnológico é reconhecer sua natureza complexa e multifacetada. Ela é, simultaneamente, ferramenta e linguagem, máquina e sensibilidade, registro e invenção. Seu poder reside justamente na tensão entre o que revela e o que sugere, entre a aparência e a interpretação. A fotografia nos ensina a ver — e a rever — o mundo, operando como uma janela, mas também como um espelho.
Em epítome, a fotografia é uma forma de mediação entre o olhar humano e a realidade. Ela transforma o tempo em imagem, o instante em memória, o visível em narrativa. Seja em preto e branco ou em cores vibrantes, analógica ou digital, artística ou documental, ela continua a provocar, a emocionar, a fazer pensar. Seu percurso histórico, sua potência estética e sua ubiquidade na vida cotidiana atestam sua importância como uma das mais marcantes expressões visuais da era moderna e contemporânea.
Por final, mais do que uma técnica, mais do que uma arte, a fotografia é uma linguagem viva — e, como tal, continua a ser reinventada a cada clique.
Prof. Dr. Adelcio Machado dos Santos
Jornalista (MT/SC 4155)
