A música, linguagem universal e milenar, atravessa culturas e épocas, conectando sentimentos humanos por meio de sons organizados no tempo. Desde os cantos tribais até as sinfonias contemporâneas, ela carrega consigo não apenas uma função artística e estética, mas também um poderoso potencial terapêutico.
Ao longo da história, pensadores, médicos e músicos reconheceram na música a capacidade de transformar estados emocionais, aliviar dores e influenciar a saúde mental e física. Este artigo propõe uma reflexão sobre a dualidade da música como expressão estética e como instrumento terapêutico, evidenciando como ambas as dimensões dialogam e se complementam.
Sob a perspectiva estética, a música se insere no campo das artes como um fenômeno que transcende a simples combinação de sons. Ela envolve ritmo, melodia, harmonia e timbre, mas também emoção, imaginação e subjetividade. Esteticamente, a música pode provocar encantamento, introspecção ou êxtase; pode pintar paisagens sonoras, criar atmosferas e evocar lembranças. Compositores como Bach, Beethoven ou Villa-Lobos não apenas escreveram partituras, mas deixaram legados que alimentam o espírito humano.
Destarte, a escuta de uma obra musical, neste sentido, pode ser uma experiência quase mística: o ouvinte é convidado a mergulhar em um universo simbólico onde a razão e o sentimento se entrelaçam.
Na Filosofia, diversos autores refletiram sobre a estética musical. Platão, à guisa de exemplo, via a música como uma ferramenta formadora da alma, com impacto moral e educacional. Já Nietzsche enaltecia a música como a mais elevada das artes, capaz de expressar o indizível. No século XX, a musicologia passou a considerar também o papel social e psicológico da música, reconhecendo que sua apreciação não está limitada ao “belo” formal, mas inclui o contexto cultural, a experiência do ouvinte e o impacto emocional da obra.
Esse impacto emocional nos leva à dimensão terapêutica da música. A musicoterapia é um campo reconhecido da saúde que utiliza a música como meio de intervenção clínica. Ela se fundamenta na ideia de que o som pode promover bem-estar, reduzir estresse, estimular a memória, melhorar a comunicação e até auxiliar no tratamento de distúrbios neurológicos e psiquiátricos. Em hospitais, clínicas e centros de reabilitação, a música é aplicada de forma científica e empática, com objetivos terapêuticos claros e mensuráveis.
Pacientes com Alzheimer, em exemplo, respondem positivamente a músicas que remetem à juventude, despertando memórias e sentimentos que pareciam perdidos. Em UTIs, canções suaves auxiliam na estabilização da pressão arterial e na redução da ansiedade.
Todavia, a terapia musical não está restrita ao ambiente clínico. No cotidiano, muitas pessoas recorrem à música como forma de autocuidado. Ouvir uma canção pode consolar, energizar ou tranquilizar. Cantar, tocar um instrumento ou dançar são atividades que, mesmo fora de um contexto formal, funcionam como válvulas de escape emocional. Nesse sentido, a música torna-se ferramenta de saúde mental, promovendo equilíbrio psíquico e expressão afetiva.
Todavia, importa notar que a função terapêutica da música não depende exclusivamente do gênero ou do estilo. Tanto uma cantiga de ninar quanto uma ópera podem exercer influência terapêutica, desde que haja uma conexão emocional genuína com o ouvinte. O segredo está na escuta ativa, na entrega à experiência sonora, e na ressonância subjetiva que cada obra pode gerar.
Interessa observar ainda como, nas práticas indígenas e ancestrais, o papel curativo da música já era plenamente reconhecido. Em rituais xamânicos, por exemplo, o som do tambor ou do canto ritualístico induz estados alterados de consciência, permitindo o contato com o inconsciente ou com dimensões espirituais. Essas práticas, hoje revisitadas por correntes da psicologia transpessoal e da medicina integrativa, demonstram que a relação entre música e cura é anterior à própria medicina ocidental como a conhecemos.
Destarte, estética e terapia não são opostos, mas faces de uma mesma moeda. A beleza da música pode ser, em si, terapêutica; e o efeito terapêutico de uma obra pode, muitas vezes, estar diretamente relacionado à sua qualidade estética. Essa integração é o que torna a música uma das manifestações humanas mais complexas e completas. Ela toca o corpo e a alma, o cérebro e o coração. É arte e remédio, forma e conteúdo, razão e emoção.
No mundo contemporâneo, marcado por excesso de estímulos e crescente adoecimento mental, redescobrir o poder da música é um convite à reconexão com a sensibilidade e à escuta do que não pode ser dito em palavras.
Em epítome, seja em um concerto, em um momento de introspecção com fones de ouvido, ou em uma roda de cura com instrumentos percussivos, a música continua sendo ponte – entre o interno e o externo, entre a dor e a beleza, entre o caos e a harmonia.
Prof. Dr. Adelcio Machado dos Santos
Jornalista (MT/SC 4155)

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